Um mês após atentado contra 'Charlie Hebdo', cartunistas na França avaliam impacto da tragédia
RIO - Assim que soube dos ataques à sede do jornal satírico
“Charlie Hebdo”, em Paris, o desenhista francês Julien Couty largou o lápis.
Naquele 7 de janeiro, 12 pessoas foram brutalmente assassinadas, incluindo oito
colegas de profissão seus, por causa das caricaturas de Maomé e piadas com o
Islã veiculadas na publicação. O pior atentado terrorista ocorrido na França em
50 anos envolvia diretamente a atividade de Couty, o desenho. Abalado, ele
demorou algum tempo para voltar a trabalhar.
— Senti uma tristeza profunda, mas não foi o medo e sim o
choque que me impediu de trabalhar — lembra Couty, cartunista da “Télérama”,
tradicional revista de cultura francesa. — Eram muitas emoções juntas e o
assunto em loop na mídia oferecia poucas possibilidades de pensar em outra
coisa. Vemos mortos todos os dias nos jornais, e tentamos colocar um pouco de
distância, porque senão é insuportável. Mas agora não há distância, tudo se
tornou mais “real” porque aconteceu aqui.

— Nossa profissão está recebendo muita atenção agora, mas
não creio que isso vá durar — avalia Couty. — As pessoas colocam o sentido que
querem no slogan “Je suis Charlie”. Eu mesmo não tenho certeza do que ele quer
dizer, se é uma adesão às ideias do “Charlie Hebdo”, uma adesão à liberdade de
expressão em geral, ou só uma palavra de apoio às vítimas. Todo mundo se
apropria do slogan e o usa como quer, milhões viram “Charlie”, até governos e
instituições.Couty é um dos muitos cartunistas do país que, um mês após os
atentados, ainda tentam medir o impacto da tragédia sobre sua profissão. Os
eventos de janeiro — que causaram um total de 17 mortes em Paris ao longo de
dois dias, cometidas pelos irmãos Chérif e Saïd Kouachi e um cúmplice, Amedy
Coulibaly, em ação reivindicada pela Al-Qaeda na Península Arábica — provocaram
mobilização, mas também dúvidas. De uma hora para outra, o desenho de imprensa
se viu no centro do debate sobre liberdade de expressão na França, causando não
apenas surpresa, mas também aborrecimento para muitos profissionais.
Paralelamente à comoção nacional, que levou milhões de pessoas às ruas e
transformou o slogan “Je suis Charlie” em símbolo da liberdade, a classe como
um todo tenta entender seu novo papel.
Como contraponto, Couty ironizou a pouca atenção deferida às
milhares de mortes causadas pelo grupo terrorista Boko Haram na Nigéria, na
mesma semana do massacre em Paris. Em uma charge para a imprensa francesa,
desenhou um recanto abandonado do país africano, com o solitário vendedor de
uma banca de jornais perguntando: “Tem alguém aí?”
— Talvez não seja normal se sentir mais afetado pela morte
de 17 pessoas do que por massacres na Nigéria, no Irã, na Síria... Mas foi o
que aconteceu — observa Couty. — Depois, em um segundo momento, isso nos ajuda
a abrir os olhos para todos os horrores do mundo e vê-los de outra forma.
INTERESSE INÉDITO PELO CARTUM
Para Aurel, desenhista do “Le Monde”, a tristeza pela perda
dos amigos — era especialmente próximo do cartunista Tignous, assassinado junto
com outros integrantes da equipe do “Charlie”, como Wolinski, Charb, Honoré e
Cabu — veio acompanhada de questionamentos. Ele não gostou, por exemplo, de ver
desenhistas serem retratados pela mídia como “arautos da liberdade de
expressão”.
— Nunca o fomos e não pretendemos sê-lo hoje mais do que
antes. A liberdade de expressão é um assunto de todos os cidadãos. Há uma
emoção ligada ao atentado, aumentada pela personalidade dos desenhistas, muito
populares para alguns, que levou as pessoas a falarem besteira. Levou-as,
inclusive, a se interessarem pela profissão e darem a ela uma súbita e
inverossímil importância, sendo que até pouco quase não existíamos para os
outros. Do nada, começaram a perguntar nossa opinião sobre qualquer assunto. É
idiota — diz Aurel.
Como previsto, a edição deste ano do Festival de Angoulême,
maior evento de quadrinhos da Europa, foi marcada por homenagens ao “Charlie”,
que ganhou um prêmio excepcional pelo conjunto da obra. Encerrado no domingo
passado, o evento teve boa parte da programação dedicada ao desenho de imprensa
e à liberdade de expressão. Em colaboração com a equipe do jornal satírico, o
Museu da HQ de Angoulême montou uma exposição que recupera, em muitos desenhos,
a história do “Charlie”. A ideia era mostrar ao público que a trajetória do
semanário não se limita aos conflitos religiosos e que ele sempre teve diversas
pautas, como direitos das mulheres, direitos humanos e ecologia.
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Nos quatro dias de evento, o diretor do festival, Franck
Bondoux, percebeu um interesse inédito do público de todas as idades pelo
“Charlie Hebdo”. Mas ele acha que é cedo para saber se haverá uma
reconsideração do papel do desenhista de imprensa no país.
— É normal que o interesse tenha aumentado depois do que
aconteceu, mas só o tempo dirá se isso trará mudanças para a profissão —
especula. — Evidentemente, muitas contradições surgiram depois dos eventos. O
pessoal do “Charlie” era brocador, eles atacavam os símbolos. Depois do 7 de
janeiro, eles próprios se transformaram em um símbolo. Isso tem incomodado a
equipe do jornal.
No segundo dia do evento, uma marcha de quadrinistas
interrompeu as sessões de autógrafo e os debates, cobrando melhores condições de
trabalho para a classe. Entre os desenhistas ouvidos pela reportagem, é
unanimidade que o setor sofre mais com questões econômicas do que com ameaças
religiosas. Apesar das 7 milhões de cópias vendidas pela nova edição do
“Charlie Hebdo”, publicada uma semana depois do atentado, a perspectiva para o
futuro é desanimadora.
— Nesse ponto, todos estamos mais ou menos de acordo,
estamos pessimistas — revela Xavier Delucq, desenhista em diversas publicações,
incluindo o “Huffington Post” francês. — Não somos valorizados, o que fazemos
nem é reconhecido como uma profissão. Os jornais falam cada vez mais da nossa
importância para a liberdade de expressão, mas quem está por trás da profissão
não é apoiado por esses mesmos jornais.
Para Delucq, a França não vê com bons olhos as provocações
da imprensa satírica — e o fundamentalismo islâmico não é o principal
obstáculo.
— Tenho mais problemas desenhando um pênis do que desenhando
um profeta — observa Delucq. — Aliás, um jornal que no dia anterior havia
defendido enfaticamente a liberdade de expressão recusou um desenho meu porque
mostrava um pênis.
ISLAMOFOBIA E CENSURA
A religião, porém, ainda é motivo de controvérsia,
especialmente entre aqueles que não aprovavam o estilo provocativo e
iconoclasta do “Charlie”. É o caso do cartunista e quadrinista Halim Mahmoudi.
De origem argelina, ele cresceu nos subúrbios pobres da cidade francesa de
Rouen, em uma cultura muçulmana — experiência retratada em duas de suas graphic
novels, “Arabico” e “Un monde libre” —, e sempre condenou as caricaturas do
profeta feitas pelo jornal. Após os ataques, sofreu “duplamente”, diz.
— Sofri como desenhista de imprensa satírica, devastado pela
morte de colegas, mas também senti raiva frente à violência do tratamento
midiático contra os muçulmanos, os árabes e os negros que, como eu, vivem na
França — desabafa Mahmoudi. — Em um primeiro momento, recusei todos os pedidos
de desenhos sobre o assunto. Me senti em uma armadilha. A maioria dos
desenhistas usou o lápis como uma arma, e não um meio de comunicação. Parece
que todo mundo perdeu a cabeça.
Mahmoudi acredita que as marchas “Je suis Charlie”
esconderam outras questões importantes, como a discriminação contra os
muçulmanos e a censura editorial nas redações.
— Sob o pretexto de que nada justifica um assassinato, e
estamos todos de acordo nesse ponto, não temos mais o direito de pensar
diferente, de matizar o assunto — diz Mahmoudi. — Ficou muito difícil criticar
o “Charlie”, questionar a validade das charges deles, sem passar por conservador,
covarde ou traidor. Na verdade, a profissão de desenhista nunca esteve no
centro do debate. Houve apenas discussões inúteis para se assegurar de que são
os outros que não sabem nada de humor. É mais uma terapia de grupo que um
debate de fato... No fundo, somos mais ameaçados pelas linhas editoriais e
contingências econômicas do que por fundamentalistas religiosos. Não há
fatwascontra cada desenhista do país, isso é paranoia!
Com um forte esquema de segurança, a edição deste ano do
Festival de Angoulême se desenrolou sem incidente algum, em um “ambiente de
fraternidade, troca e bom humor”, descreve Franck Duboux. Alguns quadrinistas
admitem que tiveram dificuldades para retomar suas atividades depois do
atentado, temendo pela própria vida ou pelas de seus familiares. Aurel diz que
levou tempo, mas reuniu forças para voltar a desenhar.
— Não podemos trabalhar com medo — diz Aurel. — É preciso ir
além das emoções muito fortes, pois elas não são boas conselheiras. Pode levar
tempo. Seria idiota dizer que nunca sentimos medo, mas é preciso superá-lo,
pelo menos quando desenhamos.